HISTÓRIA E DESCRIÇÃO DA FREGUESIA DE VILAR DE ANARGO EM 1886

Freguesia do concelho e comarca de Figueira de Castelo Rodrigo, distrito e diocese da Guarda, província da Beira Baixa.

Abadia. Orago S. Miguel Arcanjo.

Em 1708 contava 110 fogos; a História Eclesiástica de Lamego escrita por D. Joaquim de Azevedo, na 2ª metade do século XVIII e publicada no Porto em 1877, deu-lhe os mesmos 110 fogos e 300 habitantes, no que não há proporção; o Portugal Sacro e Profano em 1768 deu-lhe apenas 88 fogos; o censo de 1864 deu-lhe 97 fogos e 428 habitantes; de 1878 deu-lhe 107 fogos e 491 habitantes, e pelos meus apontamentos conta hoje 111 fogos e 482 habitantes.

Não compreende aldeias, mas somente a povoação de Vilar de Amargo, que demora na velha estrada de Figueira de Castelo Rodrigo para Vila Nova de Foz Côa, no cantão denominado Cima Côa e na margem esquerda da ribeira de Aguiar, confluente do Douro, da qual dista 4 quilómetros para O.; 7 da margem direita do Côa, para o nascente; outros 7 de Figueira de Castelo Rodrigo para N.O.; 10 da estação da Barca de Alva na linha férrea do Douro; 39 da estação de Pinhel, na linha da Beira Alta; 50 da Guarda; 199 do Porto pela estação da Barca de Alva e linha férrea do Douro, e 936 de Lisboa.

Os seus templos reduzem-se à igreja matriz, muito antiga e bastante arruinada, e a duas pequenas capelas públicas: a da Misericórdia, onde se venera uma linda imagem de Cristo, e a de S. Sebastião que, segundo consta, foi a primeira matriz desta paróquia.

Freguesias limítrofes: Escalhão, a mais populosa desta comarca, a leste e distante cerca de 8 quilómetros; Freixeda do Torrão a O., distante 4 quilómetros, e Algodres, distante outros 4 quilómetros para N.

Passa junto desta freguesia a estrada distrital em construção de Almeida a Vila Nova de Foz Côa.

Produções dominantes: trigo, centeio, azeite, vinho, amêndoas e hortaliça.

O seu chão é seco, acidentado e muito pedregoso.

Na pequena ribeira de Aguiar, que a banha pelo norte, tem um moinho de cereais, que trabalha só no inverno.

Esta paróquia (o seu chão e os seus habitantes) tem passado por imensas alternativas, como o célebre cantão do Cima Côa.

Foram, em resumo, as seguintes:

No tempo dos suevos, antes de Caliabria ser sede episcopal, pertencia eclesiasticamente ao bispado de Viseu; criada pelos godos a diocese de Caliabria, passou para ela; com a invasão dos mouros foi destruída a cidade de Caliabria e ficou deserto o Cima Côa; expulsos porém daqui os mouros, passou para o reino de Leão e para a diocese de Cidade Rodrigo, que ficou substituindo a de Caliabria, e para a nova diocese de Cidade Rodrigo passou esta freguesia de Vilar de Amargo até que o nosso rei D. Dinis conquistou ao de Leão todo o Cima Côa.

Ficaram desde aquela data este território e esta freguesia pertencendo temporalmente a Portugal, e eclesiasticamente ao reino de Leão, cerca de 100 anos, até que o nosso rei D., João I reivindicou também a espiritualidade do Cima Côa, que tomou o nome de bispado novo e ficou pertencendo ao bispado de Lamego até 1770, data em que D. José I criou o bispado de Pinhel, passando para ele as freguesias do Cima Côa, do bispado de Lamego, e outros do bispado de Viseu; finalmente em 1882 foi suprimido o bispado de Pinhel e passaram para o da Guarda esta e quase todas as outras freguesias daquele bispado.

Depois que o Cima Côa temporal e espiritualmente passou para Portugal, ainda esta paróquia administrativa e judicialmente correu variada sorte.

Sabemos que em diferentes datas pertenceu aos extintos concelhos de Almendra e de Castelo Rodrigo, ás comarcas (corregedorias) de Pinhel e de Trancoso e à grande provedoria de Lamego, que se estendia desde o concelho de Arouca inclusivamente, a O., até á raia da Espanha, a E., abrangendo ainda a N. em Trás-os-Montes grande parte do distrito de Vila Real, desde a margem direita do Tua até á esquerda do rio Teixeira, compreendendo os actuais concelhos de Mesão Frio, Régua, Penaguião, Sabrosa, Alijó e parte do de Vila Real, incluindo a própria vila! . ..

Também esta freguesia pertenceu á comarca, de Vila Nova de Foz Côa, antes de passar para a de Figueira de Castelo Rodrigo.

Passemos adiante.

Casos tristes

Em 1834, durante as cruéis represálias que os liberais exerceram sobre os realistas, achando-se nesta paróquia hospedado o tenente coronel das milícias de Trancoso, João Damasceno Pereira Coutinho, na casa do capitão-mor de Castelo Rodrigo, foi barbaramente assassinado, bem como o dono da casa e um filho deste.

Vamos fechar este artigo mencionando um facto ainda mais triste e comovente. Parece um romance ou lenda, mas foi, infelizmente, um facto.

Em um livro do arquivo paroquial desta abadia se encontra registrado o seguinte: 

No ano de 1676 (há 210 anos) em uma das noites de 26 de maio a 13 de setembro, estando o rev. abade João de Barros e Brito descansando na sua cama, bateram á porta da residência paroquial pedindo sacramentos para um enfermo agonizante. Levantou-se imediatamente o abade, mas, apenas abriu a porta para saber quem era o enfermo, foi surpreendido por dois homens estranhos, mascarados e armados, que lhe intimaram silêncio e o obrigaram a acompanhá-los os até á igreja, dizendo que a sua presença se tornava urgentíssima ali.

Logo que chegou ao adro no meio dos ditos dois homens, viu uma comitiva de cavaleiros que o cercaram. Aberta a porta da igreja, apearam-se, entraram com ele de roldão, fecharam-na sobre si, e logo lhe apresentaram uma mulher com aparência de senhora distinta, intimando-o para que a confessasse e lhe ministrasse a comunhão, que eles lhe dariam o lavatório!

Dirigiu-se o abade para o confessionário e, quando estava ouvindo a infeliz senhora, notou que os malvados tratavam de abrir uma sepultura na igreja. Convenceu-se de que iam praticar um grande crime, e, não podendo impedi-lo, resolveu demorar a confissão o mais possível, para ver se entretanto a providencia ou algum caso fortuito salvava a pobre senhora; mas os malvados abeirando-se do confessionário, intimaram o abade para que sem mais delongas pusesse termo à confissão. Concluída ela, ministrou á penitente a sagrada eucaristia; os malvados lhe deram o tal lavatório; momentos depois a infeliz senhora era cadáver; enterraram-na; intimaram ao abade completo silencio sob pena de morte. e retiraram-se.

Nunca se souberam os nomes da infeliz senhora nem dos assassinos, mas tal horror se apoderou do abade que, dias depois, deixou a igreja, a sua casa e a sua família; partiu para Roma; deu conhecimento detudo ao papa e este o nomeou cónego de Vilar Amargo ou de Amargo l

Conclui a dita nota dizendo que o abade ainda viveu muitos anos, mas não mais saiu de Roma; que dali mandou para esta sua igreja, como saudosa lembrança, relíquias de Santo Eugénio e Santo Augusto, que foram recebidas com grande pompa nesta paróquia no dia 29 de abril de 1678 e têm sido todos os anos pomposamente festejadas.

Ainda hoje (1886) aquela festividade é a primeira desta freguesia.

Mandou também de Roma diferentes alfaias para o culto e entre elas «um riquíssimo vaso sacramental de beleza e primor inexcedíveis» que foi muito maltratado pelos franceses em 1810.

Note-se que esta igreja era da apresentação alternativa do papa e do bispo diocesano, pelo que o papa, como seu padroeiro, devia receber com particular interesse o abade e conceder-lhe mais facilmente as relíquias, etc.

A pedido meu, o sr. dr. Manuel de Barros Nobre, actual juiz de direito desta comarca, foi pessoalmente a Vilar de Amargo colher informações com relação a tão estranha ocorrência e apurou o seguinte:

É facto encontrar-se em um dos livros do registo paroquial desta freguesia a nota a que se alude lavrada pelo rev. João Tomás de Carvalho Ferreira que, tendo sido pároco desde 1792 até 1795 na freguesia de Penha de Águia, e depois abade da de Escarigo (ambas deste concelho) desde 1795 até 1806, passou em seguida para esta de Vilar de Amargo, tomando posse em 23 de julho de 1812 e ao tempo em que lavrou a dita nota (2 de julho de 1815) não só era aqui abade, mas comissário do Santo Ofício, arcipreste de Almendra, examinador sinodal, visitador do bispado no distrito do Cima Côa, etc., e disse ele que indagou com muita diligência tudo o que escreveu. Merece pois crédito, posto que não indique as fontes ou provas de facto tão estranho.

Por seu turno o abade actual assevera ser ainda hoje constante e firme a tradição a tal respeito e indicou ao meu amigo a sepultura onde jaz a tal senhora, no corpo da igreja, do lado do Evangelho.

Posto que a igreja tem hoje casas próximas, o meu amigo notou que ao tempo da ocorrência estava distante da povoação cerca de 200 metros e da casa que se aponta como residência paroquial naquele tempo devia distar 250 metros.

Também o meu amigo, folheando os livros do registo paroquial, averiguou o seguinte:

1°—Que o abade João de Barros e Brito, com quem se deu a estranha ocorrência, era sobrinho do seu antecessor Domingos Henrique de Barros, falecido em 2 de março de 1652, data em que tomou posse o rev. João de Barros e Brito, talvez por haver nele, segundo se supõe, resignado o tio.

2º —Que João de Barros e Brito era licenciado em leis e tinha sido advogado em Lamego.

3.°—Que deixou efectivamente esta igreja e o nosso país em 1676, acolhendo-se a Roma, e que não mais regressou a Portugal, onde tinha a sua casa e filhos, entre eles o dr. Manuel de Barros e Brito, que foi também  advogado em Lamego e casou em 1695 com Ana da Guerra, da qual teve:

—Manuel de Barros, que se ordenou e morreu sendo cura em Escarigo, e Teodora de Barros. Casou esta com Jerónimo da Fonseca e viveu nesta freguesia de Vilar de Amargo, nas mesmas casas que foram do rev. dr. e abade, seu avô paterno, João de Barros e Brito; note-se, porém, que este meu colega havia casado em Lamego, quando era ali advogado, teve filhos do seu matrimónio e ordenou-se já depois de viúvo.

Esta freguesia, muito antes da triste ocorrência, já tinha o mesmo nome de Vilar de Amargo, como apurou também o meu amigo e se lê no Censual do século XVI.

Arquivo da Câmara Eclesiástica de Lamego.

Esta povoação nunca foi murada, mas teve um reduto, feito em 1648, durante a guerra da restauração, para abrigo e defesa dos seus habitantes contra as correrias dos espanhóis.

Do tal reduto apenas hoje existe a torre, que estava no meio dele, e serve de torre do relógio. É pouco sólida e terá 9 a 10 metros de altura.

Ao meu bom amigo e antigo paroquiano, o sr. dr. Manuel de Barros Nobre, natural da freguesia de Távora, concelho de Tabuaço, e actualmente juiz de direito de Figueira de Castelo Rodrigo, agradeço o incómodo que lhe dei e os apontamentos que se dignou enviar-me.

Ao sr. José Augusto de Almeida Crespo, agradeço também os apontamentos que me enviou.

Esta freguesia no sec. XVI era da colação e confirmação dos bispos de Lamego; pagava-lhes de confirmação 1 marco de prata, 2$340 réis,  de visitação 500 réis;  de “cathedradeguo” 60 réis e a terça.

De passagem diremos que naquele tempo só as freguesias do Cima Côa pagavam “cathedradeguo”, (60 a 240 réis cada uma) mas em compensação não pagavam “censuria”, como todas ou quase todas as outras do bispado de Lamego.

Censual do sec. XVI

In “Portugal Antigo e Moderno”, de Pinho Leal (1886, Vol. 11, Pág. 1183)


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