HISTÓRIA E DESCRIÇÃO DA FREGUESIA DE VILAR TORPIM EM 1886

Freguesia do concelho e comarca de Figueira de Castelo Rodrigo, distrito e diocese da Guarda, província da Beira Baixa.

Reitoria. Orago Nossa Senhora dos Prazeres; fogos 250; habitantes 1.130.

Em 1708 era vigairaria da apresentação do bispo de Lamego e comenda da ordem de Cristo; pertencia ao termo e concelho de Castelo Rodrigo, corregedoria de Pinhel, provedoria de Lamego, e contava 210 fogos.

Em 1768 era vigairaria da mesma apresentação, rendia para o seu pároco 10$000 réis e contava 183 fogos, segundo se lê no Portugal Sacro e Profano.

A História Eclesiástica de Lamego, escrita nos fins do último século por D. Joaquim de Azevedo, abade resignatário de Cedovim, deu-lhe 210 fogos e 632 habitantes.

O censo de 1864 deu-lhe 227 fogos e 895 habitantes, e o de 1878 deu-lhe 235 fogos e 917 habitantes.

Esta paróquia é formada unicamente pela povoação de Vilar Torpim, povoação muito antiga, bem arruada, com uma boa igreja e alguns edifícios notáveis, pelo que nos custa a crer que nunca fosse vila nem tivesse foral.

Pelo menos Franklin não o menciona nem nós encontramos notícia dele em parte alguma.

Demora na antiga estrada de Almeida para Castelo Rodrigo e deve passar aqui, ou muito perto, a estrada distrital a macadame em via de construção de Almeida para a barca e estação do Pocinho na margem esquerda do Douro, por Vila Nova de Foz Côa.

Não tem quintas nem herdades habitadas e dista 7 quilómetros de Castelo Rodrigo para S., bem como da margem esquerda da ribeira de Aguiar, para 0., e da margem direita do Côa, para E.N.E.; 9 de Figueira de Castelo Rodrigo para S.; 20 da estação da Barca de Alva, na linha do Douro, prestes a abrir-se à circulação; 25 da estação de Pinhel, na linha da Beira Alta; 48 da Guarda; 221 do Porto, pela estação da Barca d'Alva; 392 de Lisboa pela linha da Beira Alta e 558 pela do Douro.

Freguesias limítrofes: Castelo Rodrigo a N.; Reigada a S.; Vermiosa a E. e Colmeal a O. e O.N.O.

Produções dominantes: trigo, centeio, azeite e excelente vinho de mesa, lã e queijo, pois cria bastante gado lanígero.

Também abunda em caça: perdizes, coelhos e lebres, betardas, que ninguém come e cegonhas, que ninguém mata, porque, longe de prejudicarem a lavoura, prestam-lhe grandes serviços, sustentando-se quase exclusivamente de répteis.

As cegonhas e betardas encontram-se nesta província e nas do Alentejo e do Algarve.

Não nos recordamos de as ver nas outras nossas províncias. Costumam as cegonhas fazer o ninho e a criação no alto das torres.

Também por estes sítios há muitas poupas e pegas.

Costumam aqui matar as betardas dum modo curioso:

Formam um pequeno quadrado com 4 cancelas dos currais do gado lanígero e, quando morre algum cabrito ou cordeiro, lançam-no dentro do quadrado. As betardas, que são carnívoras e têm vista de lince, caem de chofre sobre o cordeiro ou cabrito, mas, não podendo levantar o voo sem darem uma corrida dalguns metros, apenas os pastores as vêm no pequeno recinto, aproximam-se e matam-nas a pau, porque elas, tentando fugir, batem nas cancelas e não podem erguer o voo.

A igreja matriz é um templo rico e vasto, com preciosas decorações de talha antiga dourada, altar-mor e 4 laterais, e boas pinturas a óleo em parte do teto da capela mor, sendo de madeira lisa a parte restante.

Também esta povoação teve 3 capelas públicas, S. Pedro, Santo Cristo e S. Miguel, mas foram demolidas. Hoje tem somente duas particulares, em bom estado de conservação e outras duas públicas, S. Sebastião, restaurada em 1885 e Santo António, em via de restauração no momento.

Das 2 capelas particulares, uma, denominada do Morgado, é contigua á igreja matriz, tem comunicação com ela e um mausoléu em que repousa um guerreiro, de apelido Aguilar, segundo se lê na inscrição esculpida junto da figura do tal herói, que o representa em corpo inteiro, armado e deitado sobre o mausoléu.

A outra capela tinha como orago Santo Antão e pertenceu à sr. a D. Josefa Mariana de Campos e Almeida, que a comprou e nela erigiu sumptuoso mausoléu ao seu marido José Alexandre de Campos, cujos restos mortais em 1852 para ali foram trasladados da sepultura em que jazia no adro da igreja matriz, onde ao tempo se faziam e ainda hoje (1886) se fazem os enterramentos, por falta de cemitério paroquial.

O dito sr. dr. José Alexandre de Campos faleceu aqui em 21 de novembro de 1850.

Fazem-se aqui diferentes festividades e duas romarias, em cumprimento de antigos votos: uma vai á freguesia de Cinco Vilas, distante 5 quilómetros, na quarta feira da primeira semana de Páscoa, a outra vai á Senhora de Monforte, freguesia do Colmeal, na segunda feira da Pascoela.

Há hoje aqui feira mensal. Foi criada em outubro de 1884 e inaugurada em 13 de janeiro de 1885.

Entre os edifícios particulares desta povoação avulta, pelas suas dimensões, antiguidade e arquitectura, o palacete que foi da nobre família Saraivas, da quinta do Ferro e diz a tradição que foi construído por um dos seus ascendentes, rico homem de pendão e caldeira, emblemas que ainda hoje se vêm no brasão que tem sobre o seu pórtico luxuoso e muito ornamentado.

O dito palacete é de arquitectura compósita, está bem conservado ainda e foi feito, não sabemos quando, por Sebastião Saraiva, ascendente dos Saraivas da nobre casa e quinta do Ferro, na freguesia de Rio de Mel, hoje pertencente à sra. D. Maria do Carmo Saraiva, viúva e com filhos, irmã e herdeira do último morgado António Saraiva, falecido há anos.

Na 1ª metade deste século D. Maria Antónia Saraiva, contando 40 a 50 anos de idade e vivendo na quinta do Ferro com seu irmão Caetano Saraiva, morgado e senhor da casa naquele tempo, casou com o dr. José Pinto, da Lezíria, e como pertencesse á dita senhora o casal de Vilar Torpim, foram para ali viver e habitaram alguns anos o majestoso palacete. Falecendo a dita senhora sem sucessão e sem testamento, passou o palacete para o morgado da quinta do Ferro, António Saraiva, que o vendeu a Jacinto Saraiva, das Freixedas, com o qual não tinha parentesco algum; e Jacinto Saraiva, falecendo solteiro e sem sucessão, deixou-o ao seu sobrinho.

Esta povoação nunca foi murada nem acastelada, mas no. tempo da guerra dos 27 anos, ou da restauração, algumas obras de defesa se fizeram era volta da sua igreja matriz, como em volta da de Escalhão e de todas ou quase todas as da raia.

Das ditas obras de defesa hoje apenas se conserva a tradição e o nome de reduto.

Há nesta povoação um bom largo com bons edifícios e ruas amplas sofrivelmente alinhadas, mas ainda calcetadas pelo antigo sistema.

Banham esta freguesia 2 ribeiros; um nasce no termo da Reigada, outro no de Castelo Rodrigo, e juntam-se a 1 quilómetro de Vilar Torpim, formando a ribeira do Avelar, que desagua no Côa.

O 1° move nesta freguesia 2 moinhos de cereais e 1 de azeitona.

Esta paróquia, por ser quase fronteiriça e estar entre as praças de Almeida, ao sul, e Castelo Rodrigo, ao norte, sofreu muito durante as guerras entre Portugal e Espanha e ultimamente na guerra da península.

Ainda em 1844, quando o general conde do Bonfim, depois da revolução de- Torres Vedras, se apoderou da praça de Almeida e o nosso exército a sitiou, esteve aqui em Vilar Torpim o hospital militar dos sitiantes no majestoso palacete dos Saraivas.

Há nesta freguesia uma filarmónica ou banda marcial de curiosos, desde 1873.

Pessoas notáveis

Poderíamos alongar muito a lista das pessoas notáveis, filhas desta paróquia, se a visitássemos e folheássemos as genealogias das suas casas nobres, nomeadamente a do venerando palacete que foi dos Saraivas, mas, para não nos fatigarmos nem fatigar os leitores, mencionaremos apenas as pessoas seguintes:

l.—Barão de Vilar Torpim, Francisco José Pereira. Foi cavaleiro da ordem de S. Bento de Avis, condecorado com a cruz da campanha da guerra peninsular, com a medalha de comando na batalha de Orthez, e por S. M. Cath. com a de Albuera, governador das armas do Porto, general do exercito, etc. Nasceu nesta freguesia a 12 d'outubro de 1783 e casou em 15 de janeiro de 1804 com D. Maria José de Sá Pereira, filha de António Domingos de Sá, tenente coronel de infanteria, e de D. Rosa Marinha d'Andrade. Além doutros filhos, tiveram; D. Mariana Amália e D. Ana Cândida.

A 1ª  nasceu em 1808 e ainda há poucos anos vivia na praça de Almeida, sendo já viúva do marechal de campo Joaquim António de Abreu Castelo Branco, do qual teve filhos; a 2ª nasceu em 1805 e casou com Jerónimo de Gouveia Sarmento, capitão de infantaria, natural de Moimenta da Beira, que, tendo seguido o partido realista, era já tenente coronel na convenção de Évora-Monte e foi covardemente apunhalado e morto junto de Coimbra, pouco depois da convenção, quando seguia viagem para a sua casa. Sobreviveu bastantes anos a viúva, que fixou o seu domicílio no seu casal de Távora, concelho de Tabuaço, e deixou os filhos seguintes:

—Carlos de Gouveia Sarmento, que vive em Lisboa, casado e com sucessão;

—D. Maria, que vive em Lisboa também, já viúva e com sucessão;

—D. Emilia, que vive em Távora, ainda solteira;

—D. Henriqueta, que faleceu solteira;

—António, que vive no Porto, (ainda solteiro também) e

—Jerónimo de Gouveia Sarmento Falcão, que vive em Almeida, onde casou e é muito estimado e considerado. Não tem filhos.

O 1º e único barão de Vilar Torpim era filho de Francisco José Pereira, major de infantaria, natural de Almeida, e de D. Mariana Victoria Ferreira Cardoso, natural desta freguesia. Teve os irmãos seguintes: António Jacinto, que foi padre, e Mateus António, que foi uma excelente pessoa e pagador do exército. Residiu em Bragança muitos anos e depois em Lisboa, onde faleceu, deixando uma filha e herdeira, casada com seu primo Carlos de Gouveia Sarmento Falcão, supra mencionado.

2ª—Mateus António de Almeida, natural desta freguesia, cavalheiro de muito merecimento e rico proprietário. Casou na vila do Sabugal com D. Caetana Manuela de Campos, filha do dr. João de Campos, capitão-mor daquela vila, e teve dois filhos que foram cavalheiros distintíssimos, ambos muito ilustrados e muito notáveis: o dr. José Alexandre de Campos e Almeida, que nasceu no Sabugal em 1794 e faleceu nesta paróquia de Vilar Torpim, na sua casa materna, em 1850, e o dr. Pedro Baltasar de Campos, que nasceu também no Sabugal em 1795 e faleceu em Pinhel a 22 de dezembro de 1870. Para evitarmos repetições, veja-se a biografia do 1.° no artigo Sabugal, vol. 8.°, pág. 293, col 1 e seg. e a biografia do 2.° no artigo Pinhel 1 vol. 7.° pág. 93, col. 1º e seg.

Era também natural desta paróquia um célebre Godinho, que no 2.° quartel deste século foi escrivão da superintendência da alfândega no distrito de Castelo Branco, homem de estatura agigantada, muito pacifico e muito prudente, mas dotado de força hercúlea!

Aí vão duas sortes características dele:

Um dia, estando a fazer serviço em certo mercado da raia, viu um homem com uma tenda e, suspeitando que fosse contrabando, aproximou-se dele e tratou de inspecionar o que vendia. O tendeiro, sem mais comprimentos, lançou mão de uma clavina que tinha debaixo da tenda, disposto a desfechar sobre o Godinho, mas este rapidamente levantou-o pelas pernas e, como se fosse um manequim de palha, duas vezes bateu com ele e com a clavina horizontalmente no chão, deixando-o estatelado ! . .

Outro dia, encontrando-se na feira de Mangualde com o célebre Manuel Soares de Albergaria, fidalgo distinto, mas muito desordeiro e muito valente, que ali fora da sua casa de Oliveira do Conde, só para ostentar valentias e fazer desacatos, disse-lhe o Albergaria: «Têm-me contado tantas proezas suas, que desejo ver até onde chega a sua decantada força.»

O Godinho desculpou-se muito modestamente, mas continuando as instâncias do Manuel Soares e atravessando no momento o campo da feira um carro tirado por bois, conduzindo uma pipa cheia de vinho, o nosso herói pegou com toda a delicadeza nas chedas do carro e o suspendeu por um pouco, ficando as rodas soltas.

Pararam os bois com a extraordinária deslocação do peso e, ficando absorto o boieiro, olhando para ele pasmado, disse-lhe o Godinho:

« Isto é uma brincadeira; recue os bois um pouco».

O homem obedeceu e entretanto o Godinho recuou também, levando o carro com a pipa suspenso nas mãos até que o colocou outra vez sobre o rodal e disse ao condutor que seguisse.

O Manuel Soares ficou muito satisfeito e convencido de haver encontrado um homem mais valente do que ele.

Isto nos contou o sr. Miguel António de Almeida Crespo, da Cogula, concelho de Trancoso, cavalheiro respeitabilíssimo e que tratou e conheceu muito de perto os dois.

Esta povoação é muito antiga, e já era uma das principais do Cima Coa nos princípios do século XI, quando os reis de Leão conquistaram e tomaram aos mouros esta e outras muitas povoações que hoje são de Portugal, como se lê na história dos godos:

Em vulgar: «Na era de 1077 (ano 1039) se ganharam aos mouros muitas povoações na Extremadura de aquém e de além, por Vilar Turpim, Almeida e Idanha, até ás margens do Tejo». 

Foi esta conquista ou correria feita por D. Fernando Magno, rei de Leão, e já naquele tempo esta paróquia tinha certa importância, pois na crónica dos godos é a única povoação mencionada ao norte de Almeida com o próprio nome de Villa Turpini, vila ou Vilar de Turpino, ou Turpim, pelo que o falecido dr. Pedro Baltasar de Campos dizia que o nome de Torpim ou Turpim lhe provem de um seu antigo senhor, chamado Turpino; mas vulgarmente dão-lhe o nome de Torpim, como patronímico de Torpes.

Também antigamente se denominou Vilar Tomé (V.) por ser de Pero Tomé.

Também esta povoação de Vilar Torpim foi comenda da ordem do Pereiro, comenda que no tempo d'el-rei D. Dinis passou para a ordem de Cristo, quando a ordem do Pereiro se uniu à espanhola Alcântara.

Data pois de tempos muito remotos esta povoação de Vilar Torpim, mas foi muito mais antiga, talvez anterior á ocupação romana, uma povoação que existiu cerca de 2 quilómetros para E., como diz a tradição local e provam diferentes objectos pre-históricos que ali se têm encontrado.

Esta freguesia pertenceu eclesiasticamente ao bispado de Viseu, do qual passou para o de Caliabria, deste para o de Cidade Rodrigo, deste para o de Lamego, do de Lamego para o de Pinhel e do de Pinhel para o da Guarda em 1882, data da última circunscrição diocesana.

Temporalmente pertenceu ao reino de Leão com todo o Cima Côa até o reinado de D. Dinis, data em que ficou pertencendo a Portugal.

Civil e judicialmente pertenceu ao concelho de Castelo Rodrigo, corregedoria de Pinhel e provedoria de Lamego, depois passou para o concelho de Figueira de Castelo Rodrigo, comarca de Trancoso, depois volveu para a comarca de Pinhel, de novo restaurada, e por último passou para o concelho e comarca de Figueira de Castelo Rodrigo, depois que este concelho se elevou a sede de comarca judicial de 3." classe, por decreto de 12 de novembro de 1875.

Em junho de 1876 pesou sobre esta freguesia e sobre as circunvizinhas deste concelho, bem como sobre as do concelho de Elvas, uma medonha praga de gafanhotos, que devoravam todos os renovos dos campos, pelo que se empregaram na apanha e destruição deles milhares de pessoas e vários contingentes de tropa, mandados pelo nosso governo.

No concelho de Elvas as autoridades pagavam a 60 réis o quilo dos gafanhotos, preço bastante remunerador, pelo que muita gente se empregava na apanha deles.

Em julho de 1885 pairou sobre esta freguesia uma trovoada medonha. Causou bastante prejuízo nos campos e por essa ocasião uma faísca eléctrica matou instantaneamente um pobre homem dos muitos que andavam ceifando trigo a leste da povoação.

In “Portugal Antigo e Moderno”, de Pinho Leal (1886, Vol. 11, Pág. 1286)


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